O universo dos jogos virtuais, especialmente as apostas online como o popular “jogo do tigrinho” e as diversas “bets”, tem se mostrado uma faca de dois gumes na vida de muitos brasileiros. Se por um lado oferecem entretenimento e a ilusão de ganhos fáceis, por outro, têm arrastado indivíduos para um abismo de dívidas, perdas de emprego e, em casos extremos, até ao suicídio.
Para entender a complexidade desse fenômeno, Álvaro Araújo, médico psiquiatra, Dra. Miriam Teodoro, advogada, e Sária Nogueira, psicóloga, debateram o assunto no programa CONTROVERSA, fazenso uma análise sobre o vício em jogos virtuais e suas devastadoras consequências.
E o que leva uma pessoa a destruir a própria vida por causa de um jogo virtual ?
“Não existe um único fator, mas sim uma complexa interação que pode levar ao desenvolvimento do jogo patológico”, explicou o Dr. Araújo. Ele destacou que, embora existam níveis de envolvimento com jogos que não configuram um transtorno psiquiátrico, o jogo patológico é uma condição séria, reconhecida desde a década de 80, com critérios diagnósticos bem definidos.
Entre as características observadas em indivíduos com essa patologia, o psiquiatra mencionou o aumento progressivo dos esforços e investimentos em apostas, a priorização do jogo em detrimento de outras atividades antes prazerosas, a necessidade de mentir e pedir dinheiro para sustentar o vício. Ele também alertou que esse comportamento pode coexistir com outros quadros psiquiátricos, como ansiedade e depressão, intensificando a gravidade da situação.
Diante desse cenário preocupante, a pergunta que surge é: como a família e as pessoas próximas podem identificar os sinais de alerta?
Dr. Álvaro foi enfático ao ressaltar a importância de observar mudanças no padrão de comportamento. “Irritabilidade, inquietude, ansiedade, depressão repentina, um interesse crescente pelos jogos em detrimento de outras atividades da rotina, comportamentos de mentira em relação a gastos e tempo, e o pedido constante de ajuda financeira são sinais importantes a serem observados”, orientou o especialista.
A esfera legal desse problema também foi abordada com pela advogada Miriam Teodoro.
“Infelizmente, temos conhecimento de casos trágicos, como o do jovem que tirou a própria vida após perder R$ 50 mil em jogos virtuais. Além disso, há inúmeras situações de plataformas que se recusam a pagar prêmios, utilizando cláusulas contratuais complexas e pouco transparentes para lesar os jogadores”, lamentou Miriam.
A advogada também também falou sobre a recente regulamentação dos jogos no Brasil, em 2023, motivada principalmente pela questão fiscal, já que o volume de dinheiro movimentado por essas plataformas era exorbitante. No entanto, ela ressaltou que a maioria das ações judiciais movidas por jogadores lesados tem sido desfavorável, dada a dificuldade em comprovar os ganhos e a complexidade dos termos de uso das plataformas. Uma exceção foi o caso de um rapaz que conseguiu receber um prêmio de R$ 120 mil após comprovar um erro de cadastro da plataforma.
Miriam ressaltou a propaganda massiva desses jogos, que muitas vezes utiliza influenciadores e promessas de ganhos fáceis para atrair, principalmente, pessoas em situação de vulnerabilidade social. Apesar da ausência de leis específicas que proíbam esse tipo de publicidade, ela apontou a possibilidade de recorrer ao Código de Defesa do Consumidor em casos de propagandas enganosas.
Para a psicóloga Sária Nogueira, a questão central reside na saúde mental fragilizada de muitos indivíduos, que buscam nos jogos virtuais uma fonte de prazer imediato ou uma fuga de suas dificuldades. “Os dados de pesquisas revelam uma alta prevalência de transtornos psiquiátricos e queixas de estresse, ansiedade e depressão. Nesse contexto de sofrimento, as pessoas podem encontrar nas plataformas de jogos um escape, impulsionado pela liberação de substâncias de prazer ao obterem ganhos, o que gera um ciclo vicioso”, explicou Sária.
Ela também destacou o fator socioeconômico, onde a esperança de ganhar dinheiro rapidamente para solucionar problemas financeiros pode levar pessoas a se envolverem nesses jogos, muitas vezes influenciadas por relatos de conhecidos que obtiveram algum sucesso inicial. A psicóloga enfatizou que a saúde mental debilitada favorece comportamentos prejudiciais, com impactos negativos em todas as áreas da vida: financeira, acadêmica, laboral, familiar e social.
A dimensão do problema no Brasil é alarmante.
Dr Álvaro mencionou dados do DataSenado de junho do ano passado, que indicavam que 22 milhões de brasileiros haviam apostado em jogos eletrônicos nos 30 dias anteriores à pesquisa. Além disso, cerca de 1,8 milhão de pessoas estavam endividadas por conta de jogos. Diante dessa realidade, o psiquiatra defendeu a necessidade de uma intervenção de saúde pública.
“Os serviços especializados em dependência química e comportamental são insuficientes para lidar com essa demanda crescente. No ambulatório do programa de atendimento ao jogo patológico do Hospital das Clínicas, a busca por ajuda aumentou mais de dez vezes no último ano. É crucial que as autoridades revejam a legalidade dessas estratégias, a regulamentação da publicidade e ampliem o acesso ao tratamento”, argumentou o médico, fazendo uma analogia com as medidas de controle adotadas em relação ao tabaco e ao álcool.
RECUPERAÇÃO
A recuperação de indivíduos que desenvolvem o vício em jogos virtuais é um processo complexo que exige uma abordagem multidisciplinar. A psicóloga Sáia Nogueira enfatizou a importância do reconhecimento do problema por parte do indivíduo e da construção de uma rede de apoio familiar. “A reestruturação da vida envolve identificar quem pode oferecer suporte, otimizar atividades prazerosas e saudáveis, lidar com a possibilidade de recaídas e reparar os danos causados, como dívidas”, explicou a psicóloga, ressaltando que a intervenção terapêutica é um processo gradual.
Do ponto de vista psiquiátrico, o Dr. Álvaro esclareceu que a psicoterapia, especialmente a cognitivo-comportamental, costuma ter um nível de efetividade maior do que a medicação no tratamento do vício em jogos. No entanto, ele reconheceu que, em alguns casos, o tratamento medicamentoso pode ser útil para controlar a impulsividade e modular o sistema de recompensa cerebral. “Existem fármacos que podem diminuir os impulsos e interferir na ação da dopamina, tentando quebrar o ciclo vicioso. No entanto, essas estratégias são geralmente utilizadas em conjunto com intervenções comportamentais”, ponderou o psiquiatra.
Para a advogada Miriam Teodoro, uma questão importante é a falta de mecanismos eficazes para impedir o acesso de crianças e adolescentes às plataformas de jogos e apostas online. Ela citou casos de menores que utilizaram cartões de crédito dos pais para realizar gastos exorbitantes, expondo a fragilidade dos sistemas de cadastro e a necessidade urgente de regulamentação nesse sentido.
O fascínio do ambiente virtual, com sua aparente preservação da identidade e a ilusão de ganhos fáceis, foi apontado pelo Dr. Álvaro como um fator que intensifica o problema. “No mundo virtual, as pessoas mostram a vida que desejam, o que pode gerar frustração e comparação. Além disso, a facilidade de acesso e o anonimato podem levar a comportamentos impulsivos e à dificuldade de lidar com as consequências reais das perdas financeiras e emocionais”, analisou o psiquiatra.
A psicóloga Sária Nogueira ressaltou que o mundo virtual, apesar da conectividade, pode paradoxalmente aumentar a sensação de solidão, contribuindo para o adoecimento mental e a busca por prazeres imediatos nos jogos.
Ela enfatizou que a recuperação é um processo gradual e que não se resolve apenas com medicamentos e alertou para o risco de substituir um vício comportamental por uma dependência medicamentosa, reforçando a importância de um tratamento abrangente e multidisciplinar.